Uma resenha de João Camilo sobre “De Parcerias e Trapaças”

Especialista em literatura oral, João Camilo de Oliveira Torres fala sobre as fábulas recontadas por Maria Inez do Espírito Santo em “De Parcerias e Trapaças”

A primeira vez que encontrei a história do Veado e da Onça, estava no primário. Era um daqueles livros cheios de belas histórias usados na alfabetização e contava mais ou menos a mesma história que Maria Inez do Espírito Santo conta no “De Parcerias e de Trapaças: histórias de ontem, para sempre” (Ilustrações de Anabella López, Aletria, 2015).

Aqui em Belo Horizonte, só conhecemos as onças preguiçosas do Jardim Zoológico, mas de certa forma, já sabíamos que era bicho bravo, de dar medo e que caçava veados. Mesmo assim, esse absurdo desta fábula passa despercebido.

Quem – muito antes da escrita se estabelecer no mundo – teve essa ideia de usar os animais para representarem os personagens nessas histórias acertou em cheio. Quando aceitamos que uma onça pode falar, nossa fé naquela história já está conquistada. Assim, fica mais fácil de acreditar que um animal herbívoro compartilharia a mesma casa com o seu predador e toda situação que se segue.

Os personagens animais representam uma característica específica, cada um deles, como a personificação de uma representação totêmica, que transmigra do contexto espiritual para o estético. Com isso os textos podem ser simplificados e focarem principalmente na narrativa e a famosa moral da história não precisa ser enunciada: elas adquirem significado a partir das ações dos personagens.

Veja como é natural o desenvolvimento da trama até o desfecho: nem a onça, nem o veado usufruem da casa que construíram, pois apenas foram capazes de cooperar enquanto ignoravam um ao outro.

Encantado pela magia do animal falante, o ouvinte ou leitor assimila esse desenvolvimento, sem questionar as possibilidades de outros diálogos entre os dois personagens, assim como não questiona a possibilidade de a raposa retornar com uma vara para derrubar as uvas.

A aparente simplicidade formal da fábula, que foi desenvolvida ainda dentro da oralidade e adaptada sem grandes mudanças para a escrita, permite que ela seja assimilada por diferentes culturas, em diferentes eras, sem necessidades de grandes alterações.

Um personagem que representa a esperteza é em geral um animal pequeno, ágil ou persistente, que raramente usa a força como recurso. Se em uma cultura a raposa representa a esperteza, em outra será o corvo, em outra o maçado, em outra o coelho, em outra o coiote, em outra será o jabuti ou a aranha.

De fato, essa aranha é tão flexível que salta para o audiovisual norte-americano sem perder suas principais características, da mesma forma que continua sendo apenas uma aranha, mesmo multicolorida nas ilustrações de Anabella López.

Na série Deuses Americanos da Amazon Prime, baseada em um romance de mesmo nome de Neil Gaiman, Anansi é um dos personagens. Oriundo do folclore Axante (atual Gana), Anansi é uma aranha, que desafia não os animais menores que uma aranha normal predaria como moscas, mas animais maiores que simbolizam a força. Seu grande adversário é o leopardo. Anansi é o personagem principal nas muitas versões do conto popular do “O macaco e a boneca de piche”, por exemplo.

Na série, há um trecho que mostra um navio negreiro levando escravos para a América, no século XVIII. Anansi viajava com eles, pois as histórias estavam viajando também. E é Anansi quem surge que usa seu talento como contador de histórias para erguer o espírito dos prisioneiros, que lutam contra uma força maior e se revoltam, destruindo o navio.

Assista ao trecho:

 

 

É claro que Anansi chegou à América em outras embarcações e é por isso que encontramos nas peripécias dessa aranha, que faz outros animais maiores como Urubus, Jacarés e o folclórico Quibungo de trouxa.

Anansi é até mesmo cruel e egoísta, mas o que ele está fazendo? Usando os recursos que tem para conseguir sobreviver. Algumas vezes, a esperteza apresenta esses aspectos amorais, afinal o mais esperto dos heróis, Ulisses, terminou punido pelos deuses com dez anos de exílio e no Inferno de Dante. Ela é usada pelo mais fraco para subverter a ordem, são os recursos de quem não têm garras e dentes afiados.

Se uma fábula apresentasse leões, ursos ou águas agindo como espertos, não restaria nenhuma esperança para quem estivesse por baixo nem alguma forma de lutar contra grilhões e opressões da força bruta e da ordem já estabelecida.

O personagem pode até ser limitado como um Jabuti: lento, desdentado e incapaz de lutar, caso atacado, exceto se escondendo dentro do próprio casco. Não há um design mais simples: desenhe uma pedra. Então seis tocos saindo do casco. E em um dos tocos uma linha que parece um sorriso e os olhos.

É com esse sorriso permanente, essa expressão imutável reptiliana, que neste caso não incomoda, que a tartaruga conquistou a fama de paciência, boa índole e esperteza nas histórias. Tal imagem é tão bem aceita que nem pensamos que elas não têm lábios para tocar flauta.

O jabuti que eu tinha quando criança se chamava Coitada e a tartaruga da história pode até sofrer um revés nas mãos da raposa, mas com calma, acabará se vingando. Coitada convivia com uma cadela e uma gata e, quando havia churrasco, também pedia por carne. E quando a gente bobeava, olhando para o lado, lá estava ela comendo um pedaço de carne antes do cachorro e da gata. Era a esperteza do bichinho, meio que feita em segredo, quando não prestamos atenção.

A fábula, como gênero, tem um quê dessa esperteza. Apesar de sua antiguidade, soube se disfarçar e persistir, fazendo parte de quase todas as culturas, tanto como registro popular quanto na escrita elaborada de autores como La Fontaine e George Orwell.

Essa universalidade, não impediu que apresentasse elementos distintos de determinadas culturas, como Anansi é da cultura Axante, o Coiote da cultura dos nativos norte-americanos ou a onça da nossa, e fizessem parte importante da identidade de um povo.

Se compararmos com as Epopeias, que representavam a identidade nacional, as Fábulas resistem com a maior dignidade. Não há nenhum sinal de que tenham perdido vigor, importância nem aparentam depender em contextualização histórica e nas figuras heroicas, tão raras hoje em dia.

Na verdade, bobeamos e a fábula chega até nós, na escola ou até mesmo via dos bichos com os quais convivemos e tratamos como parte da família. Parece trapaça, mas neste caso, me engana, por favor.

*João Camilo de Oliveira Torres é arte-educador especialista em literatura oral, contista, resenhista, roteirista de quadrinhos e podcaster, com obras publicadas pelas editoras Jaguaratirica, Devir e nas coletâneas do Livro de Graça na Praça.